Sexo e Outros Entorpecentes: Contos de Amor do Século XXI – 3ª Edição

Sexo e Outros Entorpecentes: Contos de Amor do Século XXI – 3ª Edição

 

Sexo e outros entorpecentes - 3ª edição (2)

“Promete-me amor, mas necessito de prazer”. A frase, escrita em um guardanapo, estava acompanhada pela marca de um batom vermelho. O bar lotado, testemunha ocular de uma exigência em tom de súplica, rendia interrogações sobre o pedaço de papel deixado na mesa, como uma provocação singular, sintomática, rebelião contra uma interdição que criava obstáculo a uma carnalidade devoradora e extasiante. Ali estava o “elefante na sala”.  Em “Fragmentos de um Discurso amoroso”, Roland Barthes nos entrega o seguinte trecho: “não é mais o sexual que é indecente, é o sentimental – censurado em nome daquilo que não passa, no fundo, de uma outra moral”. A sentimentalidade recebe status de algo desagradável, e os mecanismos de atração e consolidação do afeto seguem o curso que dispensa o repertório de impulsividade dos amantes. Nega-se os disparates das emoções para erguer uma estátua à racionalidade. Assim, o desejo entendido como modalidade de vida, contemplado como instância primeira e última, acaba por provocar a distorção do instinto – transforma o natural em cálculo –, e o amor romântico, concebido como procura primordial da existência, sobrepõe-se à placidez das afeições e à visceralidade contida nas relações nas quais coração e pele andam juntos, tornando-se uma obsessão e não uma experiência libertadora. O contemporâneo explodiu as certezas sobre o amor e a paixão. Paradoxo, autenticidade, possessividade, prazer e etc., tudo em um pacote ora translúcido, ora opaco.

 

Sexo e Outros Entorpecentes: Contos de Amor do Século XXI – 3ª Edição

 

Vida

 

Eduardo Augusto Corrêa***

Causos de um Aspirante a Escritor

 

Lembro ainda claramente: empurrada em uma cadeira de rodas por um corredor escuro. As lâmpadas, muitas vezes, piscando e arremessando faíscas pelas paredes. Alguém, em alguma hora, encostou no meu ombro e disse que tudo ia ficar bem. Depois de alguns Misoprostols eu não conseguiria lembrar de seu rosto.

Quando chegamos na emergência um plantonista disse que o remédio poderia me matar. Já faziam mais de dez semanas, não fazia sentido tomar medicamento. “Deveria ter procurado uma clínica antes, Vida, é o que o Doutor quis dizer…”; O rosto sem nome me olhava de volta e no fio de seu olhar esticava um fogaréu. Eu, nesta hora, já não sabia mais o que dizer. Tudo o que eu queria era estar em casa.

 

– Vida? Alguém te forçou a isso? – eu pude ouvir distante.

– Do que adianta? – Uma outra voz quase possessa ouvi do outro lado sala. – Não poderíamos chamar a polícia, de qualquer jeito!

 

Se na época tivesse forças, certamente teria dito que sim, fui forçada, fui escravizada e não tinha escolha. Que era a única maneira de escapar viva daquele amor. Nada mais importava agora. Levaria comigo a dor da indiferença e desta cicatriz na barriga.

“Temos que fazer uma escolha…”; ele me convenceu tão meigamente, que hoje me causa um grande horror, “Somos muitos jovens ainda. Já pensou em como seria a reação dos seus pais?”.

Hoje visitei minha mãe. Talvez a presença dela que me fez pensar em toda essa história de novo, também não há nem como evitar. Toda vez que encaro aqueles seus grandes olhos azuis me bate um sufoco. “A menina de minha menina…”; certamente diria, pois quando tive a chance de contar que estive grávida concordamos que era uma menina.

Não me dei conta naquele tempo, mas hoje vejo como isso foi impactante em sua vida. Certa vez, inclusive, flagrei pilhas de sapatinhos rosas feitas de tricô em seu guarda roupa. Quando sai ‘Vida’ da boca dela até parece ser uma forma de ser punida.

Se você tivesse a chance, sei que me perguntaria: Valeu a pena? Não sei se consigo responder essa pergunta completamente. “O bebê ou eu”; Eduardo decretou naquela noite e pronto. Ambos já sabíamos a resposta.

Não que eu não quisesse lutar pelo meu bebê. Entenda: um amor nunca substitui outro. Em algum lugar do meu coração, por mais que pareça tão negro e vazio, há um espaço dedicado a ele. Mas todo o resto estava tomado de uma doença. Uma força tão maior que eu, é o que move minha vida. Tenho certeza que alguém já lhe perguntou: Qual é o motivo que te faz levantar todos os dias da cama para viver? Eduardo foi a minha por quinze maravilhosos anos.

Depois do aborto, no entanto, algo mudou dentro de mim. Lembrei de quando minhas primas engravidaram e me disseram como era. “Espere até sentir os pezinhos!”; foi uma de tantas coisas que me contaram. Mais ainda: confessaram terem se transformado em outro tipo de mulher. Só não me contaram que eu também mudaria caso não o tivesse.

Aquele garoto, sim, posso ver hoje claramente, deixou de ter aquela aura magnética. Seu perfume deixou de ser hipnótico e, confesso, qualquer palavra sua me atingia violentamente. O Eduardo que eu tanto amava foi reduzido a uma sombra, depois um calorão e no final um fantasma. E num coração onde só cabia o nome dele, depois de morrer, virou flor.

E tem vezes que ainda sonho com ele. Olho seu rosto incandescente e o seu rosto me olha de volta, depois sorri e vai embora. É assim que eu aprendi a amar ele. E quando já o vejo distante ao bater de suas asas, descubro que não o amei mais pelo que me fez fazer:

 

– Estou com você, Vida – Foi a última coisa que me disse, ainda segurando minha mão. – Daqui a pouco voltaremos para casa.

 

 

Último Cigarro

 

Yaemi Yamauchi**

Beatniks, Malditos e Marginais

 

Encostado na janela, ele acende o último cigarro. Está de costas pra mim, me deixou sentada na ponta mais longe da sua sombra.  As louças do jantar de ontem ainda estão sujas, mas, mesmo assim, eu arrumo o meu cabelo e ponho uma lingerie. Nós éramos o inferno na terra juntos. Éramos.

Tudo começou com aquele duelo na sinuca, certamente ele era o melhor jogador de sinuca do bar e eu a melhor jogadora, até que fomos desafiados para um duelo.  Foi uma disputa belamente acirrada, geralmente se apostam cervejas; mas ele quis que eu pagasse o drinque mais caro, caso vencesse. E eu disse que ainda não havia decidido o que iria querer, caso eu vencesse, porém, em meus pensamentos, eu sabia bem o que queria. Ele ainda teve a imbecilidade de desdenhar de mim, como se fosse sua partida ganha. Mas se surpreendeu, mostrei a ele o poder feminino e venci. Foi aí que seus dedos manchados de nicotina coçaram a barba, me olhou nos olhos e perguntou:

– O que a snooker girl vai querer?

E eu outra vez admirei as suas vulgares e magníficas tatuagens de garoto punk rock, jeans apertado, cabelo comprido, olhos brilhantes mergulhados em Johnnie Walker e um cigarro maculado de arrogância. O calor do meu corpo se excitou com seu hálito cheirando a filtro vermelho.

– Você. – respondi

Olhou surpreso com minha resposta breve e firme, e me pagou a bebida mais cara do bar. Depois de duas horas de conversa e três dry martinis, deixei que ele me levasse pra sua casa.

É um comum amanhecer de quarta-feira pra mim e pra ele também, que ainda está dormindo. Ainda me sinto eufórica, cada átomo borbulhando em meu corpo pela intensidade dos quatro orgasmos que ele me deu. Olho em volta do estranho quarto e há garrafas de cerveja e roupas espalhadas pelo chão, e forte cheiro de erva queimada. Abro a grande janela de vidro e os finos raios de sol abraçam o meu corpo, e meu cabelo castanho avermelhado parece estar em chamas. Sento, acendo um cigarro e observo seu sono pesado e perturbador, me perguntando se ele lembraria do meu nome. A minha parcela de amor me fazia querer ficar, entretanto, meu sentimento de liberdade faz com que me envolva com caras como esse. Visto minhas roupas e vou-me embora, sem deixar bilhete e número de celular.

Passado uma semana, lá estava eu apostando cervejas em bares com mesas de sinuca. De repente, aparece na minha frente os braços tatuados que me acalentaram por uma só noite.

– Que sorte a minha finalmente te encontrar, snooker girl. Julia. – disse ele

– Pensei que havia esquecido o meu nome. – respondi

– Nem com todos aqueles quilos de maconha que fumamos, eu esqueceria, snooker girl.

Dei risada.

Não sei direito por qual razão, mas dessa vez foi eu que o levei para casa.

Os meses correram como um rio agitado, era como se a aventura de hoje fosse ser maior do que a de ontem só de por nossos pés pra fora de casa. Nossas vidas estavam girando em torno de festas em quartos de hotel, uísque e cigarros, pichar cavaletes nas ruas, conversar até bem tarde na praça olhando estrelas. De noite, sentir todo o seu amor mergulhando dentro de mim intensamente até me deixar sem fôlego.  E um sentimento que desmontou o meu posto de mulher forte.

Talvez seja por isso, não conseguimos ser fortes dentro desse amor violento que episódios de ciúmes e perseguições acabaram cegando nossas mentes. Cada hora passada no relógio, sinto o amor se esvaindo, queimando e se consumindo sozinho. Parece que mesmo depois de apagado, ele continua a nos queimar. Quando o sol acorda, só há seus olhos chapados tomando todo o espaço do quarto e minha boca com gosto de ressaca. Ainda há um coração batendo por trás de tanta soberba ou só estamos flertando com o desastre que tornamos?

Encostada na janela, acendo o primeiro cigarro. De costas pro nada, perdida entre a voz de Janis Joplin e meu copo de conhaque, sua sombra acaba de dobrar a esquina. Deitada na rede imersa de espinhos, a louça permanece suja.

 

Inferno

 

Evandro Cruz***

Café e Analgésicos

 

Nunca me acostumei com o calor desse lugar, muito menos com o cheiro, o tédio, então, nem se fale, aqui não há absolutamente nada para fazer e eu passo os dias de minha existência basicamente suando e prendendo o nariz. A lotação é sempre máxima, pouquíssimo espaço e eu nem me lembro da última vez que eu pude esticar minhas pernas, além do mais, o excesso populacional só faz o calor aumentar.

Algumas pessoas dizem que só as pessoas ruins vêm para cá, eu sempre achei esse critério duvidoso e nunca confiei em nenhuma entidade capaz de fazer essa separação moral com o mínimo de precisão. O lugar onde eu moro tem vários nomes mas acho que o mais popular entre eles é “Inferno”, o termo vem do latim, significa “mundo inferior”, apesar de que daqui de dentro não dá pra saber muito bem em que posição estamos em relação aqueles que dizem viver.

Você deve estar se perguntando o porquê de minha estadia aqui, pergunta previsível e curiosa, todo mundo pergunta por que alguém foi para o Inferno, ninguém se interessa pelos motivos que levam alguém ao céu.

Para entender como cheguei aqui é necessário entender a história de minha mãe, e consequentemente, a de meu pai. Minha mãe era uma mulher de família rica, bem educada e com pais carinhosos, um pesadelo psicanalítico para quem tentava entender suas escolhas amorosas, ela sempre gostou dos “problemáticos” e quando jovem, aos 15 anos, casou-se com um homem da idade de meu avô, o casamento acabou em um ano e ela voltou grávida para casa da família, realizou um aborto, mas esse não sou, esse mora no andar de cima como todas as crianças propositalmente abortadas.

Depois da faculdade ela teve um caso com o meu futuro pai, um bêbado inveterado que depois de algum tempo começou a bater em minha mãe com mais frequência do que ela imaginava ser possível, ela engravidou de novo, casaram-se no quarto mês de gestação.

As duas estratégias: tanto o casamento quanto a gravidez tinham como objetivo interromper as surras para que o amor que ela sentia por ele não se acabasse. Compraram uma casa grande no quinto mês de gravidez, tinha até uma grande piscina no quintal dos fundos, as surras terminaram e minha mãe parecia aliviada.

Na trigésima semana de gravidez algo mudou, talvez só naquele estágio meu pai entendera que eu poderia nascer a qualquer momento e isso o deixou furioso, tomou o maior porre de sua vida e voltou para casa, já com saudades das marcas que ele conseguia imprimir na pele de sua parceira.

Minha mãe descansava na beira da piscina e não percebeu quando o homem que ela amava a agarrou pelo braço e desferiu um soco em sua face. Por um momento ela pensou que seria só mais uma surra habitual mas, talvez pelo cansaço, talvez pelo instinto materno, ela reagiu jogando uma cadeira contra seu agressor, que ficara furioso e correu para agarrá-la, a bebida venceu a disputa pelo equilíbrio, ele tropeçou e caiu na piscina.

Meu pai nunca foi uma grade nadador e o excesso de álcool turvou seus sentidos levando-o ao desespero e ao afogamento. Com os pulmões enchendo d’água, ele estendeu a mão em pedido de socorro a única pessoa que podia salvá-lo naquele momento.

Desesperada, minha mãe correu em ajuda para tentar tirá-lo, mas ao se agachar na beira da piscina o desespero transformou em gélida consciência: a grande chance de terminar com todo sofrimento estava ali, em sua frente, bastava assistir, e foi essa decisão que a tomou. Com um olhar impassível no rosto, ela assistiu todas as fases de um afogamento: o corpo debatendo, o ar saindo aos poucos do corpo, dando lugar a água e transformando-o em uma boia natural, fria e pálida.

Depois de alguns minutos minha mãe começou a chorar desesperadamente, em meio a soluços ela foi atravessada por uma culpa sem origem, sem endereço, uma força que sugeria o único caminho para o fim de seu sofrimento, a sugestão foi aceita, ela fechou os olhos e calmamente deixou seu corpo cair na piscina, com a face virada para a água e alguns momentos de concentração ela sabia que a dor não ia durar muito.

E foi assim que eu cheguei aqui, eu ainda não consegui me acostumar com o calor.

 

 

 

* Eduardo Augusto Corrêa.  Cronista, Poeta, Ensaísta e Contista, nasceu em 26 de Março de 1992 em Porto Alegre. Entretanto, somente em sua adolescência, no ano de 2007 em Florianópolis, que veio a desenvolver mais claramente suas obras. Nesta mesma época uniu-se a outros artistas amadores/anônimos.

No ano de 2010 foi criado por ele o blog “Atrás dos Olhos”, originalmente como uma forma de desabafo. Suas primeiras obras foram publicadas neste ano, bem como suas primeiras parcerias na literatura foram desenvolvidas.

Com o passar dos anos o autor veio também a expandir seus desejos e ambições. Entrando no mundo do Teatro através do Grupo Ilha do Ká, Santo Antônio de Lisboa, em Abril de 2012 teve a oportunidade de interpretar Jesus Cristo durante a Paixão.

Hoje, com mais de 200 poemas, 2 livros à venda, 1 uma loja virtual e o seu Site Atrás dos Olhos, Eduardo Corrêa segue escrevendo com a mesma paixão inicial, sempre com o intuito de descobrir novos seguimentos literários, atingindo assim o maior número possível de pessoas, conectando-as com o amor a todas as artes.

** Yaemi Yamauchi. Tenho 18 anos e sou apaixonada pela escrita desde criança. No futuro, pretendo continuar trabalhando envolvida com as artes.

*** Evandro Cruz tem 23 anos e é sociólogo, goleiro e contador de histórias, tem um sério problema de auto percepção e não consegue se livrar da ideia de que o espelho só reflete o próprio espelho e o que reflete a pessoa é o tempo.

 

Tiago Haubert

Tiago Haubert é escritor e sonhador, empresário idealizador da marca de roupas FORS e advogado. Mantém o blog Causos de um aspirante a escritor que traz dicas para escritores e tem o intuito de apoiar a literatura nacional. Escreve também no “blog Tiago Haubert” do site “Tudo sobre floripa”. Em 2015 terá seu primeiro romance – Enigmas dos Sonhos: O Pergaminho Encantado – publicado pela Editora Selo Jovem.

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