Sexo e Outros Entorpecentes: Contos de Amor do Século XXI – 1ª Edição

 

 capa sexo e outras coisas

As relações contemporâneas são marcadas pela fluidez e pelo descompromisso? É possível manter um caso amoroso em um mundo que procura formalizar a flexibilidade como característica central? Por que querem controlar o desejo atrelando-o ao amor? O amor se transformou no século XXI? Perdeu espaço para as relações casuais? Em Hollywood, filmes como “Sexo e Outras Drogas” (Anne Hathaway e Jake Gyllenhall), “Amizade Colorida” (Mila Kunis e Justin Timberlake) e “Sexo Sem Compromisso” (Natalie Portman e Ashton Kutcher) procuram “esquadrinhar” o casal moderno mostrando como o sexo os une e o envolvimento sentimental, em princípio, não é algo desejado. Porém, o amor sempre está ali na esquina. Nos romances do establishment, o desejo se rende ao amor. Conclusão: descobre-se que o prazer dos corpos não é suficiente. Será? Se os relacionamentos hodiernos, como postula Zygmunt Bauman, são pontuados pelas incertezas, insegurança e muitas vezes tratados como mercadoria – se não funcionou, troca –, o que um comportamento desapegado e menos romântico no que concerne aos encontros sexuais traduz?   Os blogs Beatniks, Maldit@s e Marginais, Café e Analgésicos, Causos de um Aspirante a Escritor, Cultura e Coisa e Tal organizam uma antologia de contos que tem como temas o amor e o desejo, e toda a complexidade, fragilidade e possibilidades que ambos sentimentos evocam. Sexo e Outros Entorpecentes: Contos de Amor do Século XXI é uma publicação que conta com a participação de 20 escritores, dividida em cinco edições (com quatro autores em cada edição). Eis a volúpia literária. Quando nos atinge, temos o entorpecente mais orgásmico do universo. “”Ele lhe arranca o vestido, joga-o longe, arranca a calcinha branca de algodão e a leva nua para a cama. Então, vira-se para o outro lado e chora.” (Marguerite Duras, “O Amante”). Apresentamos a primeira edição.

 

Sexo e Outros Entorpecentes: Contos de Amor do Século XXI – 1ª Edição

(Nesta edição, excepcionalmente, com três autores)

 

Água Fria e Corpo Quente

Afobório*

Causos de um Aspirante a Escritor

 

Ela despejou um balde de água gelada em cima dele.

— O que você está fazendo na cama, até uma hora dessas?

— Dormindo, quer dizer, esperando por você, querida.

— Por que você não colocou as roupas pra lavar?

— Querida, ontem eu trabalhei até tarde.

— Você trabalha? Acho que a mamãe está certa, você não quer nada da vida, você é mesmo um parasita.

— O que você quer dizer com isso?

— É que eu enchi o meu saco, Tom, eu passei a noite toda de plantão naquele hospital, a costurar gente estropeada, e quando chego, a casa está de pernas pro ar, você não faz nada, nunca, e passa o tempo todo fazendo a mesma coisa: bebe, come, dorme, escreve e emporcalha tudo (não necessariamente nessa ordem), e eu tenho de colocar as coisas no lugar todos os dias, como se eu fosse uma máquina, e eu não sou uma máquina, seu filho da puta.

— Quando a gente se conheceu, Mirna, você não pensava assim, ia a todos os sarais que eu participava, queria sair em todas as fotos, e dizia que eu era o chinelo mais bonito que uma mulher poderia querer, e que os meus livros eram geniais.

— Tom, eu estou cansada de tudo, você nunca tem dinheiro, e quando tem gasta tudo em bebida, ou custeia a impressão dos seus livros, a gente não tem mais 18 anos, cara, custa ter um pouco mais de responsabilidade?

— Mas eu tenho. Você viu como as resenhas sobre o meu livro são positivas, todo mundo que leu curtiu.

— Eu sei, mas que diferença isso faz em nossas vidas? Todo mundo me pergunta como eu aguento, e eu não tenho nem mesmo uma resposta pra dar. Eu quero que você arrume as suas coisas e suma daqui.

— Tudo bem, eu vou embora, se é o que você quer, eu vou.

Enquanto descia pelo elevador, acendeu um cigarro, e quando abriu a porra da porta do edifício, o celular tocou.

— O que você quer?

— Desculpa, Tom, eu amo você. Volte pra casa, eu quero transar, e já tirei a roupa.

Em poucos minutos, uma gritaria ecoava por todos os andares do edifício, e quando tudo silenciou, Mirna fumava um cigarro ainda deitada na cama, enquanto Tom datilografava freneticamente, mais um de seus contos.

 

 

Podemos Ir Papeando

Juliana Curvo**

Beatniks, Maldit@s e Marginais

 

Houve um tempo, um outro tempo, onde um garoto combinava o futuro com um amigo. Eles iriam viajar juntos, primeiro desceriam em Paris e depois partiriam para Grécia, que era, por sinal, a terra dos avós de um deles. Eles não fariam vestibular, ao menos naquele momento não. Havia algo de negativo nisso: fazer vestibular. Iriam mesmo era conhecer a cinemateca francesa, ver os manuscritos de Truffaut sobre “Jules e Jim”, o romance de Henri-Pierre Roche, que virou a melhor adaptação que se conhece na história do cinema. E ainda com Jeane Moreau. Sim, a linda Moreau. Os amigos dividiam coisas, graças e não havia mulher interessante por ali, nenhuma valia a pena. Um deles gostava de usar lenço no pescoço e gostava de ser míope. O outro rapava a cabeça, deixava só um pouco de cabelo e tinha a barba por fazer. Os dois gostavam de mascar chicletes. Ia tudo muito tranquilo nesse tempo, quando em uma manhã de primavera, onde alunos não trocam mais de escola, apareceu uma garota. Não era loira como a Jeane de Truffaut, mas tinha os cabelos curtos como a Jean Seberg, em “Acossado”, de Godard. Ela fumava na saída da escola, usava óculos escuros e não conversava com ninguém.

O míope foi o primeiro a falar dela, citá-la no meio de uma conversa sobre passagens aéreas mais baratas ou o que colocar na mochila, antes de partir. O de barba por fazer acabou falando, um pouco: quem sabe, ela é desses tipos calados, que deve esconder um furacão dentro do peito. Ela bem que podia andar com uma placa, um aviso, poupe o meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoas.

Os dois riram e talvez nunca tivessem sorrido daquela maneira, um para o outro. Foi a primeira vez que se encostaram e perceberam que estavam sentados bem próximos, no sofá da casa de um deles. Estavam descobrindo, juntos, o significado dos sons – ou a ausência deles – em uma tarde de chuva. O de barba por fazer resolveu ir embora, no outro dia haveria aula e o de óculos perguntou se ele passaria por ali, para irem juntos: podemos ir papeando. O outro passou e foram e nesse dia chovia, sempre chove nessa época, logo pela manhã. Como é doce poder escrever e colocar no texto que chovia, logo pela manhã. Pena não ser isso o mais importante, valendo mesmo os ímpetos que aproximam os seres (sic).

Na escola havia algum evento, alguma palestra, esse tipo de coisa (quem se importa?) sobre carreira e futuro. E eles achando tudo tão chato, até quando a garota, meio Jean, levantou seus longos braços, deixando aparecer a pele branca, essa coisa, essa roupagem contínua e flexível, que envolve os seres humanos por completo. Uma pele-memória. A garota disse que faria vestibular para cinema e gostaria de saber sobre o mercado de trabalho para “Os sonhadores”. Alguns riram, os três riram, eles e ela. Os dois se olharam, pensando que encontraram alguém do mesmo tipo: até quem enfim!

Houve um tempo, um outro tempo, onde três amigos viajaram juntos para a Europa. Primeiro Paris, depois Grécia. Nesse tempo, que era outro, eles se amavam e tateavam todos os poros e as experimentações possíveis. Era uma dança sem clichês, regada, em alguns dias, por leitura de sonetos do Vinícius e cochilos abraçados (isso é clichê?).

Nesse tempo, ninguém se incomodava com o fato dos três dormirem juntos e conhecerem o gosto e a temperatura uns dos outros. Era um tempo onde amores valiam, duravam, experimentavam. E como uma das formas de parar o tempo é escrevendo, eles viraram conto pequeno e fraco de escritor amador. De fato mesmo, os três envelheceram: o míope virou professor universitário, teve um casamento rápido com um outro professor, mas não passou disso. O de barba por fazer virou cineasta, fez um longa no Brasil e conseguiu um emprego em uma produtora francesa, para selecionar novos roteiros. Nunca teve um relacionamento fixo, estável. E ela, meio Jean, nunca deixou os cabelos crescerem. Depois da viagem para a Europa com os amigos, resolveu viajar pelo Brasil e não fez vestibular para nada, encontrou o yoga e dava aulas no espaço Bahva Yoga sítio-escola, em Pirinópolis, Goiás.

Foi o de barba quem teve a ideia: podíamos nos reunir novamente, 17 anos se passaram porra! Falou com o míope pelo Skype. Mandaram e-mail para ela, meio Jean, que respondeu sim, seria bacana, onde e quando? Sugeriu Brasília, mais perto e fácil. Não, de jeito nenhum, tem que ser Paris, insistiu o de barba por fazer, que agora tinha cabelos grisalhos. Foi em Paris que começou nossa viagem. O míope concordou, comprou passagem em uma promoção no submarino e viu hotel, na boa meu amigo, prefiro ficar em um hotel, no booking. Ela, meio Jean, não respondeu mais e-mail, não abriu mais e-mail, não foi para lugar nenhum. Estava tudo bem ali, não precisava sair do lugar.

Os dois se encontraram em Paris, caminharam na chuva, foi em uma manhã de chuva que tivemos coragem de conversar com ela. Pois é, mas ela mudou, algumas pessoas mudam com o tempo. Parece que nós dois ficamos presos em alguma bolha. Os dois riram e se abraçaram. Cara, você ouviu, conhece uma banda nova de Virgínia? Ah, já vem você com essas bandinhas norte-americanas. Sério, é bacana, tenho aqui no ipod, a banda chama-se Wild Nothing, vão fazer uma apresentação amanhã aqui em Paris, sei lá pensei que poderíamos ir. Escuta aí o som. Os dois ainda abraçados, o grisalho pergunta: fala de uma mulher que abandonou dois caras? Eles riram. Não, respondeu o míope, fala que você pode me ter. Soltou os braços da cintura do outro e colocou os fones no ouvido do grisalho, apertou play na música nocturne. Pô, gostosinho. Pode dançar se quiser. Eles riram e esqueci de dizer que já tinham rugas, marcas do tempo, essas coisas na cara. Enquanto o de barba por fazer e agora grisalho ouvia a música, o míope falou meio baixo, meio sem querer ser entendido: o melhor final para Jules e Jim, seria os dois ficarem juntos e deixar ela, Jeane, ser outra coisa. Um meio que dançando na calçada, com fones de ouvido, outra parado com as mãos no bolso, olhando. E a cabeça deles longe dali, em um outro tempo, onde chovia à tarde e eles se despediram com um abraço demorado e combinaram irem juntos para a escola no outro dia, iriam papeando.

 

 

Distopia

Siturcio***

Café e Analgésicos

 

Casara-se ainda muito nova, aos vinte e um anos. A vida era frugal, mas ela gostava dos sabores pitorescos. Não acompanhava a vizinhança, e fazia gosto da distância. Por educação cumprimentava, mas mal sabia o nome do padeiro da esquina. O marido, ao contrário, era um homem simpático, educado e, principalmente, apaixonadíssimo pela esposa. E dizia: “Por ela faço tudo”. As vizinhas não acreditavam em sua santidade: “homem é safado por instinto”, mas ele não dava samba.

Após três anos de casados, a vida parecia entrar numa rotina típica do triênio marital. Os dias se resumiam a trabalho, jornais, novelas e afazeres domésticos, da qual o marido sempre participava. Não queriam filhos, achavam-se novos, e com as economias planejavam viagens à praia, que sempre eram postergadas por gastos extraordinários.

Quando completaram exatos cinco anos de casamento ela chamou-o para jantar, e, enquanto ele se preparava, ela fez o pedido: “Quero uma surra de presente”. O marido, sem reação, disse: “Deixa de bobagem, e sente-se” e sorriu gentilmente. Ela insistiu: “Uma surra, por nosso casamento”. O homem, que jamais pensou em agredir qualquer pessoa, não sabia como reagir. O pedido não parecia surgir de uma pessoa sã. Pensara, na hora, que sua esposa poderia estar com alto índice de stress ou com depressão. De qualquer forma, não sabia como reagir. “Não posso, não tenho coragem”. Ela, todavia, foi relutante: “Ou uma surra ou o divórcio”.

Diante da situação, ele apoderou-se de um medo terrível e, sem pensar nas consequências, bateu em sua esposa como nunca havia feito em sua vida. Ela, porém, não chorava, parecia, a cada novo golpe, mais eufórica. Gemia e pedia para que batesse mais e mais. Extenuado ele cai, e ela sobre ele. Ao vê-la, quase sem vida, e extremamente machucada, percebeu que ela já não era sua bela e amada esposa.

A solidão, então, o contamina. Sentia como se houvesse perdido o amor de sua vida, embora ela sangrasse ao seu lado no chão da cozinha. Ele a beija, no ímpeto de recuperar o amor que abrasava seu coração, mas só sente sangue. O abismo é cada vez mais medonho. Ela sorria, ele despedaçava. Tomado pela brutalidade da vida, segue até o banheiro e, com uma tesoura, fura os dois olhos. Não podia ver o que antes era a felicidade, portanto decidiu apenas senti-la. Foram felizes, e em todo aniversário de casamento a comemoração era banhada de sangue.

 

MT, 04 de dezembro de 2014

Siturcio.

 

 

 

* Afobório é o pseudônimo do gaúcho Alexandre Durigon, editor e revisor de texto, tem participação em várias antologias, dois romances, Livre para ser preso (2009) e, Contos de amor e crime: um romance violento (2014).

Apresenta como seu mais novo trabalho a organização da Antologia Big Buka — Para Charles Bukowski (Lançamento ainda em 2015), pela Editora Os Dez Melhores. Demais escritos em (www.medoemorte.blogspot.com.br) e pela internet afora. Página no Facebook (Afobório). E-mail para contato (afoborio@gmail.com).

 

**Juliana Curvo. Mestre em estudos de cultura contemporânea, foi curadora de mostras como “o amor segunda Kar-Wai” e “O gosto do outro”.  Participou de um coletivo de fotografia, expôs em “Na ferrugem do tempo des-vendo as cores da memória”. Escreve de quando em vez. Sempre tem a gata Nina de companhia.

 

***Siturcio. Nascido no mundo da imaginação. É ficção de corpo e alma. Poderia ser de escorpião, mas não. É tudo e nada. É paixão e ilusão. Mundo e escuridão. Conta os dias, e as noites ele prefere mergulhar. É só Siturcio. Poeta, contista, cronista e escreve, já que escrever é sua essência.

 

Tiago Haubert

Tiago Haubert é escritor e sonhador, empresário idealizador da marca de roupas FORS e advogado. Mantém o blog Causos de um aspirante a escritor que traz dicas para escritores e tem o intuito de apoiar a literatura nacional. Escreve também no “blog Tiago Haubert” do site “Tudo sobre floripa”. Em 2015 terá seu primeiro romance – Enigmas dos Sonhos: O Pergaminho Encantado – publicado pela Editora Selo Jovem.

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